"O motorista acelerava a máquina, que dava trancos nos barrancos que apareciam e jogava a carga para o alto. Lá dentro, escuro naquela luz bonita das seis horas de céu limpo, vários assentos vagos - sinal de viagem menos cansativa.
Lá fora corta um ventinho frio, atrevido. Ali dentro, o ar já mostra sinais do quão carregado vai ficar. As janelinhas nunca dão conta de fazer circular o ar, mesmo quando escancaradas.
Um instante e casa cheia. Meninas bonitinhas, com bolsinhas e roupinhas, possuem distribuição agregada. O restante faz questão de ser tudo aleatório. Da entrada ao ponto final.
Ao lado o celular faz papel de rádio de pilha, no ouvido atento da moça. À frente, a velha torce seu nariz para todos que se sentam a seu lado. Ao lado dela, o negro desenha devaneios num papel, balançando a cabeça ao som de vá lá saber o quê. Atrás, a morenaça de vestido longo tosse escandalosamente, deus queira que cobrindo a boca ao fazê-lo. O cobrador faz seu interminável "péim-péim" com moedas nas barras da catraca, e a catraca eletrônica, por sua vez, solta seus apitos periódicos para nos lembrar que ela não vai deixar ninguém passar, se não pagar.
Eu viajo longe, tentando achar e manter um sorriso na cara, cabeça fervendo depois de uma aula magnífica, dez capítulos de vinte livros mais vinte anos de trabalho. Procuro manter a cabeça focada nas ruas, nos faróis de carro, no céu que contrasta, azul forte, com as luzes acobreadas dos postes ali fora. Todos vão para algum lugar, alguns sem tanta pressa ou pose; cabelos se desgrenham, bocejos se entregam. Destampam cervejas, abocanham cozinhas, abraçam e apontam. O friozinho repentino bota a criançada nos moletons e as mães no salto alto. Elas, crianças, continuam deslumbradas com tudo que lhes aparece, esticam-se para pegar, puxar as cordinhas penduradas que fazem barulho quando se puxa uma delas. Celulares tocam uma sinfonia de melodias, de bom gosto ou não, trazendo recados, avisos e declarações. Eu continuo olhando mais pra fora do que para dentro. Constato que um "chicrete" me grudou na sola e que a pilha do aparelhinho acabou - agora a trilha sonora cessa. O sinal abre e o verde remoto que se retira pra dormir e voltar amanhã, sem pressa, junto comigo na próxima viagem. Amanhã."
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