quarta-feira, 24 de março de 2010

"Teve um dia que resolveu sair descalço. Nem chinelo, nem sandália - pé no chão mesmo. Na raça, como disse um vizinho palpiteiro.
Precisava ir ao banco, e assim foi. Chegando lá, olhar inclinado da vigia. É, era uma segurança mulher, ou mulher segurança, enfim.
- Assim o senhor não pode entrar não, moço. Não é lugar de pedir dinheiro aqui não.
Outro olhar inclinado, dessa vez do dono dos pés descalços. Só os pés, porque o restante estava devidamente calçado - calças bem passadas, camisa e gravata e barba. Tudo muito certo para o calor que fazia no dia.
- Moça, me desculpe, mas tenho uma pendência a resolver com o gerente. Não posso me demorar aqui, tenho ainda que voltar ao lugar onde trabalho.
Um terceiro olhar, dessa vez em direção a qualquer lugar que não fosse os olhos do homem pé-no-chão. Entrou, fez o que tinha que fazer e se foi.
Olhares confusos, curiosos e até sorridentes, de todos com quem ele cruzou. O porteiro da firma veio correndo, desabalado e solícito, achando se tratar de alguma emergência - assalto, acidente ou desafeto - chegando a ponto de aparar nosso pedestre com os braços. Passadas as explicações e desculpas, seguiu pela escada. Sentia calor nos pés e queria deixar o mármore fresco fazer seu serviço.
Escritório, banheiro, torneira e sabão.
Como não tinha mais que sair à rua, o dia passou da mesma forma. Talvez isso o tenha inquietado. Seus pés batucavam, remexiam em tudo o que estava ao alcançe. Puxava fios do computador, fez o mouse cair, derrubou a lixeira e ficou por lá, feito criança, mexendo nas bolinhas de papel, rasgando folhas, amassando o que ainda não estava. Com isso chegou ao fim do expediente. Veio à cabeça a frase automática, ou melhor, o ato involuntário de procurar as tiras do chinelo, para frente, para os lados e, por fim, para trás, embaixo da cadeira. Lembrou-se e tocou para a rua. Os pés formigavam de pressa. Tocando a calçada eles estacaram. Pareciam cheirar a direção a seguir. Os dedos se encolheram e esticaram e a marcha recomeçou.
Sem pressa agora, foi olhando onde tinha canteiros e pequenos trechos com terra seca, nos pés das árvores. Por incrível que pareça, chegou em casa (não era longe) pisando em pouquíssimo cimento. Olhos para os amigos-pés, sujos feito cachorro que escapole para a rua antes do portão se fechar. Marrons? Pretos? Não arriscava nomear a cor.
Novamente banheiro, chuveiro bucha e sabão. Água morna lavando a alma dos pés.
O chinelo parecia uma roupa de mergulho, ou traje de astronauta. Os pés exploravam cada trecho do presente, feito a gente quando entrava dentro de caixa de papelão, daquelas de geladeira. Um mundo novo, tanto dentro como fora.
Saracoteou pela cozinha, sala, banheiro de novo e cama. Dali não sairia mais por hoje. O calor continuava e nem a colcha ele desdobrou.
Pensou onde tinha ido hoje, onde iria amanhã. Pensou em tudo que fez e viu.
Deitou a cabeça e fechou os olhos, cansado e tranquilo.
Mas logo acordou assustado; queria saber se seus pés ainda estavam ali."

Um comentário:

  1. Se escanear a capinha pode mandar pro meu email -> xchristianix@hotmail.com . Beijos!!!

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