"Depois de tomar chuva e molhar até o cinto, lá está ele à espera da sua vez na sala do dentista, ou melhor, da dentista. Já começa bem, a bendita está atendendo numa sala que não é a dela. Bom, isso acontece - pensa.
Toma assento e fica, tentando não deixar transparecer sua cara de raiva, já que odeia se molhar de chuva, exceto em dias de calor, com os amigos e uma cerveja na mão. Enfim, se esforça e consegue manter um sorriso no rosto.
Mas, infelizmente, começa a prestar atenção aos barulhos do local - enceradeira, ventilador velho e conversas. Muita conversa onde observa-se placas e cartazes com a palavra SILÊNCIO por toda parte.
Repara que a maior parte da falação vem da sala onde justamente vai se consultar. E pior, a voz mais estridente e irritante é, obviamente, da dentista que vai atendê-lo.
Pronto, era o que faltava! Uma dentista que fala demais não deve ser legal. Imediatamente se questiona se ela usa máscara. A imagem de alguém sentado à sua cabeceira, falando alto e espalhando gotículas d'água por toda parte, inclusive seu rosto e boca, lhe causa um tremor na espinha, digno de Hitchcock.
Mas seu otimismo estava em alta, e logo tirou isso da cabeça quando foi chamado - ela estava de máscara.
Porém, notou que o consultório esteve aberto todo esse tempo, com duas ou três pessoas lá dentro, falando também.
Aiaiai, recitou como um mantra.
Entrou e viu-se diante de uma figura que em nada se parecia com um profissonal. Preferiu não se demorar olhando aquilo, para não ter que lembrar depois.
Assinou onde devia e sentou-se.
As perguntas de praxe, o babador de papel-toalha colocado torto e seus pés encharcados, lá na frente.
"Abra a boca; não, fecha um pouco."
"Vamos ver se o mocinho escova dente direito."
"Tá vendo ali? Tudo aquilo é placa bacteriana, sabe o que é isso?"
"E esse ciso? Ih, todos já romperam, mas não vão passar disso. Bom vai ser arrancar. Você já não é mais criança, isso vai te causar problema. Não importa o que os outros dentistas disseram, vai ter que arrancar os quatro! É, pelo jeito tá faltando é coragem, não? É já vi, é falta de coragem, mesmo. Se fosse eu, arrancava."
Na limpeza em si, com o tal jato de bicarbontao de sódio, sente os intrumentos levantando sua gengiva igual uma faxineira levanta o tapete. Delicada como um rinoceronte.
O falatório continua, em ritmo acelerado, ainda bem que de máscara
Quando sente que falta pouco, um deslize e lá vai o jato esfolar sua gengiva e o céu da boca e o fundo da língua. Arde como raspar a parte de cima dos dedos em uma parede de chapisco.
Palavrões vêm à tona, em alto em bom som, o mau humor de estar molhado se traduziu em uma cara de completo descontentamento. Vai cutucar assim a boca do teu pai, pensa, enquanto cospe a sangria, que a digníssima diz ser culpa da má escovação, e não da sua incompetência. E faz questão de repetir.
Por pouco não se levanta da cadeira e volta pra chuva.
Contém-se, respira e ganha mais um tanto de papel-toalha para se enxugar. Melhor seria uma toalha felpuda, mas até aquelas bem vagabundas, de motel, serviriam.
Pensa que talvez ela seja veterinária, e não dentista de gente. Descarta a idéia, respeita os veterinários demais para tal comparação.
Passa então a se perguntar quem trata dos dentes dela. Tomara que seja alguém igual. Ou pior.
Enxague com antisséptico bucal, pra fazer arder o que ainda não tinha ardido, com um comentário pra lá de babaca: "Tem um gostinho bom,né? Refrescante! Nesse calor é bom!"
Que calor, diabos?! Uma chuva do cão lá fora, frio faz dois dias, tempo nublado. Calor? Só se for do inferno de onde ela veio!
Lá vem o flúor "sabor-tutti-fruti-você-vai-ver-que-delícia". Lambuza também o nariz e o queixo.
Pede radiografia. Tira radiografia. Volta. Entrega. Ela olha no meio do corredor, pega a marmita e tchau. Pelo jeito, tudo certo.
É, acabou, pensa. Por sorte a chuva passou, e dor no céu da boca já mostra sinais de que vai diminuir.
Quando entra no ônibus se lembra da bandeja com os instrumentos, esterilizada e lacrada, que a maldita abriu no parapeito da janela..."
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