quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

"Antes ele se preocupava com os resultados das coisas que não podia prever; se o troco do pão ia dar pra inteirar uma revista qualquer, para matar o tempo. Pensava se seu cachorro não lhe daria nenhuma complicação enquanto ele estivesse trabalhando, já que aprendia, cada vez de uma maneira diferente, a escapulir do quintal.
Muitas vezes ele deixou de ir a encontros com amigos, com receio de que um e-mail importante chegasse e ele não o respondesse a tempo, com a devida urgência e seriedade que tais assuntos merecem (ou cobram). Algumas poucas vezes deixou de tomar banho, ressabiado com algum escorregão no box ou choque no interruptor do quarto, uma vez que também poderia esquecer os chinelos. Isso sem contar o sereno e as correntes de ar, traiçoeiras como sempre.
Esquecia-se que para escrever um conto ou pintar um quadro, não é preciso nada, a não ser querer fazê-lo. Teimava em sentar-se com o caderno no colo, lápis apontado e mãos secas, pronto e paramentado para ser criativo. Esquecia-se também, que o papel não precisava ser xingado e rasgado para fazer as idéias saírem. E, por muitas vezes, negava às vontades seus direitos de se expressarem. Censurava os traços que fluíam de seus dedos e palavras coloridas que forçavam caminho por entre seus dentes. Tinha outras coisas para fazer.
Negava o suor, os suspiros, as risadas e as sessões de cinema em salas quase vazias. Negava passeios silenciosos e olhares solitários e insinuantes para a lua e as estrelas. Vetava seu coração de vagar, bobo, por sorrisos e pernas alheias. Proibia sua voz de cantarolar qualquer melodia que lhe subisse garganta acima.
Negava, sem perceber, a si mesmo e à sua amada, inconsciente dos suspiros apaixonados que vinham da janela em frente."

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